Um crime horrendo na terra da Ribeira do Pai Mouro

Aos Advogados de Canas que foram os obreiros por a lista de “Só Canas” ter sido aceite no Tribunal, (médicos e outros profissionais de saúde, porque também estiveram desde o início com os moderados, preparem-se são os seguintes).

Manuel entrou no escritório de advocacia do Dr. Augusto. Estava muito nervoso. Tinha andado, mais uma vez, a travar-se de razões com a sua esposa Maria José.
Quem mandava em casa, ou melhor em Manuel, era Maria. No povoado o pedreiro era conhecido pelo “Manuel da Maria Movimentalista”. (Isto quando os homens são conhecidos por serem pertença da esposa, diz o povo canense e bem… está o caldo entornado!)
Desde logo, o pai da moça ao dar-lhe o nome de José para juntar ao de Maria… certamente apercebeu-se que o lado autoritário, a vertente masculina da res ia desenvolver-se.
E como era feia a Maria José! E se ainda não bastasse esse castigo divino, desde o útero de sua mãe tinha-se deixado engordar até aos dias de hoje.
-“ Muito bom dia, o que é que se passa? O que vos traz por cá?” Perguntou o Advogado.
-“A minha mulher foi à polícia fazer queixa contra mim. Tem um lanho de 10 cm na testa. Ela diz que fui eu que lhe mandei com uma colher de pedreiro.”
(Esta situação era comentada na localidade, o Doutor já tinha ouvido comentar na rua que o Manuel da Maria Movimentalista tinha perdido a paciência com os desvarios autoritários da companheira.)
-“ E não terá sido assim mesmo?”
Fazendo um gesto para se levantar, Manuel retorquiu:
-“ Doutor, eu estou a falar a verdade.”
-“ Tenha calma. Eu não estou a chamá-lo mentiroso. O Senhor tem duas possibilidades: Diz que bateu, mas que está arrependido, que nunca teve nada com a justiça… ou então nega os factos, diz que a senhora bateu na fresta da porta… que é incapaz de bater numa mulher, nem com uma rosa!”
-“ Doutor, o que é que me aconselha a fazer?”
-“ Alguém viu a testa da sua esposa ir ao encontro da colher?”
Manuel sorriu, sinal evidente que estava mais calmo.
-“ Não, os vizinhos ouviram os gritos quando ela… bateu na fresta da porta. Quando for chamado a depor o que devo dizer, Doutor?”
-“ O Advogado é apenas a voz do queixoso ou do réu perante a Justiça. O cliente é quem escolhe o caminho. Até ao julgamento pense nas duas possibilidades, confessa ou nega, seja qual for a sua escolha pedirei a absolvição.”
O jurista acompanhou o cliente até à porta do escritório:
-“ Vá com calma, tudo se resolverá. Mande compor a fresta da porta…”
***
Dia do julgamento. O Tribunal estava cheio de curiosos para assistir à audiência. Numa terra de brandos costumes, o crime de bater na esposa era o crime mais grave que tinha ocorrido na Comarca, só comparado com o crime cometido há um par de anos pelo Tonito Movimentalista: Roubo e a consequente matança do porco da Dona Etelvina. Não valeu de nada o Dr. Augusto ter alegado no Tribunal que foi para matar a fome dos seus 5 filhos e das suas duas companheiras e que ele não provou nada do “bicho”.
“- Não roubarás, uma Lei dos homens e um dos 10 mandamentos bíblicos.” Disse o Juiz. “- 10 meses de prisão.”

O Dr. Augusto foi o último a chegar ao Tribunal, no hall de entrada cumprimentou os presentes com uns sonoros “Bons dias”, as senhoras responderam-lhe com uma vénia e os homens tiraram a boina da cabeça.
O Manuel aproximou-se:
“- Doutor, não sei o que vou fazer à minha vida, só lá dentro é que decido o caminho…”
***
A sala do Tribunal era ampla. Na parede central estava uma tapeçaria com a imagem da justiça: uma senhora com os olhos vendados, numa das mãos tinha uma espada, na outra mão segurava uma balança.
Ao fundo da sala estava uma mesa comprida com três cadeiras ao centro e uma cadeira na ponta. Do lado direito da sala existia uma mesa com duas cadeiras. Em frente da mesa do Juiz estava a cadeira do réu, a única que não era almofadada. Uma cancela de madeira separava esta parte da sala com bancos compridos para o público se sentar.
O Juiz e o Delegado entraram na sala. Todos se levantaram.
O Juiz Barrelas sentou-se na cadeira central, o Procurador Saraiva sentou-se na cadeira à direita da mesa, e numa das cadeiras da secretária sentou-se o Advogado canense.
“- Façam o favor… Podem se sentar.”
Todas as pessoas sentaram-se. Em seguida o arguido, sem nunca se ter sentado, ouviu a acusação.
“- Estes factos, pelos quais vindes acusado, são verdadeiros? Perguntou o Juiz.
Um silêncio…
“- Sr. Dr. Juiz, uma parte é verdadeira, outra é falsa.”
“- Comecemos pelos factos verdadeiros.”
“- A minha querida e adorada esposa fez um lanho de 10 cm, corte que foi cozido a sangue frio com 11 pontos pelo Dr. Americano. Isso é verdade.”
“- Tudo o resto é falso? Está a querer dizer ao Tribunal que não mandou uma colher de pedreiro à testa da queixosa?”
“- Nem à testa dessa senhora, nem à testa da minha esposa. Sr. Dr. Juiz, eu vou contar a verdade… que V. Exas procuram.”
“- Conte ao tribunal o que se passou?”
“- Sr. Doutor, a minha cozinha está ligada com a sala de jantar. O que separa a cozinha dessa divisão é um degrau de 30 cm. A cozinha tem mosaicos no chão, a sala não… dia para dia…mas a verdade é que ainda não fui comprar o resto do material. Ora… o degrau não tem mosaico na parte lateral, está em “quina viva”. A minha Senhora escorregou quando estava a levantar a loiça da mesa de jantar para ir lavá-la à cozinha…bateu com a testa no degrau. Ainda tentei agarrá-la, (a cara dela já não a favorece e com uma cicatriz ficava uma desgraça, quando fosse para adormecer os filhos tinha que a pôr a dormir no alpendre…) mas já era tarde.”
“- Por mera hipótese, imaginemos que foi assim que se passaram os factos. Porque razão a queixosa fazia queixa de vós?”
“- Senhor, ela descobriu que eu vou votar no Aires.”

Depois foi a vez de Maria José ser ouvida pelo Tribunal. Repetiu o que a acusação referia: Tinha havido uma discussão que acabou com uma colher de pedreiro a voar em direcção a ela, (que por boa pontaria do apontador ou pelo acaso do destino tinha-lhe acertado bem no meia da testa).
As testemunhas não disseram nada de relevante, as de Manuel disseram que ele era um santo sem altar mas com um calvário e as testemunhas de acusação, uma delas era o Presidente da Junta, disseram que ela era uma jóia de pessoa.
O Procurador, sem fazer perder muito tempo ao Tribunal, pediu a pena máxima para este crime: 24 meses de prisão em cela isolada.
O Advogado, depois de uma longa alegação de defesa, (convenceu o público da falsidade dos factos mas prolixa), pediu a absolvição.
“- O tribunal volta a reunir daqui a uma hora.” O Juiz ia debruçar-se sobre tudo o que foi dito em audiência para decidir de uma forma justa.
***
Sentença do Juiz:
“ Vai o Sr. Manuel condenado a 1 dia de prisão, com pena suspensa durante 3 meses, pela prática do crime de lesões físicas por negligência. Perante este Tribunal ficou provado que era pedreiro, por este facto, tinha a obrigação de construir o degrau de uma forma segura. Se assim tivesse acontecido, Maria José não tinha ficado mais horrível do que aquilo que era.”

No final, as pessoas deram os parabéns ao Dr. Augusto pela excelente estratégia de defesa. O Advogado agradeceu, mas de uma forma discreta sorria ao pensar no “caminho” que tinha sido seguido pelo pedreiro do Pai Mouro. Estava tentado a não cobrar honorários a tão brilhante estratega!